sábado, 20 de abril de 2013

Caridade ou Amor, segundo Paulo?


Um dos mais belos ensinamentos do novo testamento está registrado em 1º Coríntios 13. Mas este ensinamento tão repetido entre todos os cristãos apresenta uma divergência crucial na tradução, pois em algumas versões vemos a assunto central em torno do termos "Amor" ou "Caridade" e para uma melhor compreensão do ensinamento e da tradução precisamos de alguma profundidade, até mesmo para entendermos as implicações de uma e outra versão. Será que faz grande diferença? Vamos estudar.
Estudamos algumas traduções bíblicas vemos diferenças marcantes na palavra essencial do texto. A palavra principal hora é traduzida por Amor e hora é traduzida por Caridade. Tentamos entender o motivo da divergência esbarramos num problema muito comum enfrentado pelos tradutores de todos os tempos, mas sobre tudo quando se trata de traduzir textos muitos antigos para a linguagem de hoje.
Como exemplo pense que daqui há mil anos uma carta que você escreveu para um amigo fosse encontrada e um tradutor no futuro tentasse traduzi-la para o seu idioma. Imagine nesta carta você, tentando explicar que enfrentou uma situação de muito constrangimento, escrevesse: "- Eu tive que engolir um sapo tremendo e o pior: em silêncio". Para nós hoje é muito simples entender o que você pretendeu dizer, mas pense na dificuldade para o tradutor, depois de traduzir cada palavra, tentando entender se a tradução estava correta, se perguntasse coisas como: - O sapo era pequeno o suficiente para que este homem conseguisse comê-lo? Será que o sapo estava vivo para tremer, ou era o homem que tremia? Quem estava em silêncio, o sapo ou o homem?
Com este pequeno exemplo fica bem fácil entender o grande desafio que é traduzir um texto antigo. O exemplo acima mostra uma expressão idiomática (ditado popular), que não pode ser traduzido literalmente sem explicações complementares.
Outro problema muito mais comum é o que acontece com a falta de palavras para uma boa comunicação. O ideal seria que houvesse uma palavra para cada pensamento o que hoje ainda não temos. Na época em que o texto de Coríntios foi escrito a linguagem era muito pobre, mais restrita do que hoje. Um bom exemplo para este problema é o da palavra pneuma, de origem grega, que pode significar: espírito, alma, vento, ventania, vendaval, sopro, soprar e etc. Daí nos perguntarmos de maneira muito direta: O que leva tal tradutor a escolher esta e não aquela palavra no ato de traduzir determinado texto?
Avaliando as traduções bíblicas descobrimos que todas elas são traduções teológicas, ou seja: são traduções direcionadas para certos públicos de determinadas religiões, e o tradutor naturalmente tenderá a aclimatar os textos de maneira que melhor se adapte ao pensamento da sua teologia. Mesmo nas traduções ecumênicas (as que são realizadas com a participação representantes de diferentes religiões) não conseguem fugir desta estrutura.
Sendo assim vamos à pergunta crucial do texto de 1º Coríntios 13. Qual a palavra mais adequada para este texto: Amor ou Caridade? O texto grego utilizado para a tradução é escrito com a palavra Ágape, um dos quatro nomes gregos para Amor. Já na versão da Vulgata (construída em latin de 382 a 402 por ‘Jeronimo de Strídon’ a pedido de ‘Dámaso I’, bispo de Roma) o texto traz a palavra caritas como podemos averiguar no 1º Corintos 13:04 “caritas patiense est benigna est caritas non aemulator non agit perperam non inflatur”.
Como não há textos originais de seus autores, apenas cópias de cópias, os tradutores precisam escolher entre os manuscritos disponíveis para suas traduções e no caso de 1º Corintios, os mais antigos são do segundo ao terceiro século D.C e existem apenas fragmentos. Não é possível assim estabelecer com certeza a tradução exata da palavra empregada por Paulo (Amor ou Caridade).
Mas uma observação importante é que a escolha de uma ou outra palavra não nos parece alterar a essência do pensamento paulino e sendo assim podemos deduzir que não há uma tradução mais correta. A palavra amor dá mais cadência poética ao texto, já a palavra caridade tem a vantagem de servir ao entendimento do texto de Paulo, ao mesmo tempo em que nos força à uma interpretação do que significa caridade.
Vulgarmente se interpreta caridade como o ato de dar coisas, enquanto que a mensagem no diz: “E, quando houvesse distribuído os meus bens para alimentar os pobres e houvesse entregado meu corpo para ser queimado, se não tivesse caridade, tudo isso de nada me serviria.”. Este pensamento nos leva a inferir que a caridade não está exatamente no ato em si mesmo, mas sim na intenção, no motivo que nos faz dar alguma coisa.
Por dedução, e apenas por dedução, podemos dizer que há uma escolha mais adequada ao pensamento do autor e se existe, deve ter relação com o texto como um todo e com o pensamento do cristianismo. Mas é possível também, e é nisso que acredito, que neste texto as duas palavras representam muito bem o espírito da mensagem, pois o amor no evangelho tem sempre uma conotação de entrega e de ação. Basta lembrar a parábola do bom samaritano utilizada por Jesus para explicar o amor ao próximo. Sem considerar todos os demais detalhes contidos nesta parábola, vemos Jesus representando o amor como ação de entrega, comprometimento e dedicação completa, ou seja: Caridade.
A tradução de Saci, escolhida por Kardec para “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, utilizou a palavra Caridade no texto que inicia da seguinte forma:

Ainda quando eu falasse todas as línguas dos homens e a língua dos próprios anjos, se eu não tiver caridade, serei como o bronze que soa e um címbalo que retine; – ainda quando tivesse o dom de profecia, que penetrasse todos os mistérios, e tivesse perfeita ciência de todas as coisas; ainda quando tivesse toda a fé possível, até ao ponto de transportar montanhas, se não tiver caridade, nada sou. – E, quando houvesse distribuído os meus bens para alimentar os pobres e houvesse entregado meu corpo para ser queimado, se não tivesse caridade, tudo isso de nada me serviria.
A caridade é paciente; é branda e benfazeja; a caridade não é invejosa; não é temerária, nem precipitada; não se enche de orgulho; – não é desdenhosa; não cuida de seus interesses; não se agasta, nem se azeda com coisa alguma; não suspeita mal; não se rejubila com a injustiça, mas se rejubila com a verdade; tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo sofre.
Agora, estas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade permanecem; mas, dentre elas, a mais excelente é a caridade (S. PAULO, 1ª Epístola aos Coríntios, 13:1 a 7 e 13.)

Esta Caridade/Amor da mensagem de Coríntios representa a entrega completa e não tem qualquer vínculo com os vícios humanos, de tal modo que na conclusão do texto ele diz que ao fim permanecem as três virtudes: fé, esperança e amor/caridade, mas a maior das três é o amor/caridade...
E para quem ainda confunda a excelência do que é caridade, remetemos o leitor à questão 886 de "O Livro dos Espíritos” que não por coincidência é a primeira do item “CARIDADE E AMOR AO PRÓXIMO” no capítulo XI do terceiro livro “DA LEI DE JUSTIÇA, AMOR E CARIDADE”: 

886. Qual o verdadeiro sentido da palavra caridade, como a entendia Jesus?
“Benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas.”
O amor e a caridade são o complemento da lei de justiça, pois amar o próximo é fazer-lhe todo o bem que nos seja possível e que desejáramos nos fosse feito. Tal o sentido destas palavras de Jesus: Amai-vos uns aos outros como irmãos.
A caridade, segundo Jesus, não se restringe à esmola, abrange todas as relações em que nos achamos com os nossos semelhantes, sejam eles nossos inferiores, nossos iguais, ou nossos superiores. Ela nos prescreve a indulgência, porque de indulgência precisamos nós mesmos, e nos proíbe que humilhemos os desafortunados, contrariamente ao que se costuma fazer. Apresente-se uma pessoa rica e todas as atenções e deferências lhe são dispensadas. Se for pobre, toda gente como que entende que não precisa preocupar-se com ela. No entanto, quanto mais lastimosa seja a sua posição, tanto maior cuidado devemos pôr em lhe não aumentarmos o infortúnio pela humilhação. O homem verdadeiramente bom procura elevar, aos seus próprios olhos, aquele que lhe é inferior, diminuindo a distância que os separa.


Obs: Todas as fonte consultadas estão disponíveis na internet, para que qualquer leitor possa consultar e tirar as próprias conclusões.

 

10 comentários:

  1. Amado irmão Fredson...

    Tardei mas vou comentar esse seu texto. Você foi bastante equânime na abordagem, dando aos tradutores o direito de utilizar tanto "amor" como "caridade". Abordou, também, com muita propriedade, a questão da pobreza das línguas antigas. Mas eu ficaria com a opinião de alguns exegetas que argumentam que Paulo quis falar de um tipo de "amor" mais amplo do que o que pode se restringir a apenas duas pessoas. É o amor que se entrega, como você explicou. Que se anula, que se machuca com os espinhos para poder distribuir apenas as flores e seu perfume. Um amor que dá de si e não requer absolutamente nada, nem mesmo reconhecimento. Segundo esses exegetas, Paulo utilizou específicamente, nesse contexto a palavra Caridade, justamente para afastar o conceito da ideia mais "manipulada" de um amor que considere qualquer forma de "compensação".

    Abaixo dois artigos que tive a temeridade de traduzir do inglês, e que representam bem a ideia que descrevi.

    Abraços fraternos.

    Vagner Gomes da Silva
    São Bernardo do Campo - SP

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    (ver próximos posts)

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  2. Então, Fredson, tentei publicar os textos, mas eles ultrapassam o limite de 4.096 caracteres permitidos nos comentários aqui. Vou te mandar pelo e-mail.
    Abração.
    Vagner

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  3. Adorei a explicação! Muito obrigada.

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  4. O problema sexual na cidade de corinto,deturpava também o conceito de amor. Afrodite era considerada a deusa do amor e este possuía uma conotação principalmente sexual. Desse contexto grego vem a palavra "erotismo", que é derivada do nome "Eros", um deus da mitologia. Paulo parece estar preocupado com essa questão quando dedica o capítulo 13 ao amor. Ele quer formar um conceito correto a respeito do amor, mostrando o que ele é e o que ele não é.

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    1. Bem visto,contextualizar a época e o ambiente nesse tempo e local é essencial para uma boa compreensão deste tema

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  5. Achei este artigo excelente,assim como o contextualizar das palavras à época,também a análise do leitor "Unknown" está excelente

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  6. Resolveu um baita problema para uma apresentação que ia fazer! Meus enormes agradecimentos!

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  7. Excelente explicação!! Ajudará muito numa palestra que irei realizar.

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